O calígrafo
desfeito
«O
desenho de Magritte é tão simples quanto uma página tomada de um manual de botânica: uma
figura e o texto que a nomeia. Nada mais fácil de reconhecer do que um cachimbo
desenhado como aquele; nada mais fácil de pronunciar, a nossa linguagem bem o
sabe, do que o nom d'une pipe. Ora, o
que produz a estranheza dessa figura não é a contradição entre a imagem e o texto. Por uma boa razão: não
poderia haver contradição a não ser entre dois enunciados, ou no interior de um
único e mesmo enunciado. Ora, vejo bem aqui que há apenas um, e que ele não
poderia ser contraditório, pois o sujeito da proposição é um simples demonstrativo.
Falso, então, porque o seu referente,
muito visivelmente um cachimbo, não o
verifica? Mas quem me dirá seriamente que este conjunto de traços entrecruzados,
sobre o texto, é um cachimbo?
Será preciso dizer: Como tudo isto é palermice e simples; este enunciado é
perfeitamente verdadeiro, pois é bem evidente que o desenho representando um
cachimbo não é, ele próprio, um
cachimbo? E, entretanto, existe um hábito de linguagem: o que é este desenho? É um
bezerro, é um quadrado, é uma flor. Velho hábito que não é desprovido de
fundamento: pois toda a função de um desenho tão esquemático, tão escolar,
quanto este é a de se fazer reconhecer, de deixar aparecer sem equívoco nem
hesitação aquilo que ele representa. Por mais que seja o depósito, sobre uma
folha, ou um quadro, de um pouco de uma fina poeira de giz, ele não reenvia como uma flecha ou um indicador
apontado a um certo cachimbo que se encontra mais longe, ou algures ele é um
cachimbo. Desconcerta o facto de ser inevitável
relacionar o texto com o desenho (como convida o demonstrativo, o sentido da palavra
cachimbo, a semelhança da imagem) e ser impossível definir o plano que
permitiria dizer que a asserção é
verdadeira, falsa, contraditória.
Não
consigo tirar da ideia que a brincadeira reside numa operação tornada invisível
pela simplicidade do resultado, mas que é a única a poder explicar o embaraço
indefinido por ele provocado. Essa operação é um calígrafo secretamente
constituído por Magritte, em seguida desfeito com cuidado. Cada elemento da
figura, a sua posição recíproca e a sua relação derivam dessa operação anulada
desde que foi completada. Por trás desse desenho e dessas palavras, antes que literalmente
nome de um cachimbo, expressão
corrente, eufemismo que substitui a exclamação nom de Dieu, considerada na França como pesada blasfémia. Um pouco
da maneira como o nosso PDI substituído pelo Charme da Vida. No entanto, a ausência de semelhança entre a
palavra Dieu e a palavra pipe sugere que a substituição se fez
pela facilidade de pronúncia. Uma mão tenha escrito o que quer que seja, antes
que tenham sido formados o desenho do quadro e nele o desenho do cachimbo,
antes que de lá em cima tenha surgido esse grande cachimbo flutuante, é
necessário supor, creio eu, que um calígrafo foi formado e, em seguida se
descompôs. Tem-se aí a constatação do fracasso e os restos irónicos.
Na
sua tradição milenar, o calígrafo tem um tríplice papel: compensar o alfabeto;
repetir sem o recurso da retórica; prender as coisas na armadilha de uma dupla
grafia. Ele aproxima, primeiramente, do modo mais próximo um do outro o texto e
a figura, compõe com linhas que delimitam a forma do objecto juntamente com
aquelas que dispõem a sucessão das letras; aloja os enunciados no espaço da
figura, e faz dizer ao texto aquilo que o desenho representa. De um lado, alfabetiza
o ideograma, povoa-o com letras descontínuas e faz assim falar o mutismo das
linhas interrompidas. Mas, inversamente, reparte a escrita num espaço que não
tem mais a indiferença, a abertura e a alvura inertes do papel; impõe-lhe que
se distribua segundo as leis de uma forma simultânea. Reduz o fonetismo a não
ser, para o olhar de um instante, senão um rumor acinzentado que completa os
contornos de uma figura; mas faz do desenho o fino envoltório que é necessário traspassar
para seguir, de palavra em palavra, o esvaziamento de seu texto intestino. O
calígrafo é, portanto, tautologia. Mas no oposto da retórica. Esta emprega
pletora da linguagem, serve-se da possibilidade de dizer duas coisas com
palavras diferentes; usufrui da sobrecarga de riqueza que permite dizer duas
coisas diferentes com uma única e mesma palavra; a essência da retórica está na
alegoria. O calígrafo, quanto a ele, serve-se dessa propriedade das letras
que consiste em valer ao mesmo tempo como elementos lineares que se pode dispor
no espaço e como sinais que se deve desenrolar segundo o encadeamento único da
substância sonora». In Michel Foucault, Isto Não é Um Cachimbo, Editora Paz e Terra, 1973,
tradução de Jorge Coli, 1989/2004, ISBN 978-857-753-031-1.
Cortesia
EPTerra/JDACT