segunda-feira, 23 de março de 2015

Isto Não é Um Cachimbo. Michel Foucault. «Como tudo isto é palermice e simples; este enunciado é perfeitamente verdadeiro, pois é bem evidente que o desenho representando um cachimbo não é, ele próprio, um cachimbo?»

Magritte 
jdact e wikipedia

O calígrafo desfeito
«O desenho de Magritte é tão simples quanto uma  página tomada de um manual de botânica: uma figura e o texto que a nomeia. Nada mais fácil de reconhecer do que um cachimbo desenhado como aquele; nada mais fácil de pronunciar, a nossa linguagem bem o sabe, do que o nom d'une pipe. Ora, o que produz a estranheza dessa figura não é a contradição entre a imagem e o texto. Por uma boa razão: não poderia haver contradição a não ser entre dois enunciados, ou no interior de um único e mesmo enunciado. Ora, vejo bem aqui que há apenas um, e que ele não poderia ser contraditório, pois o sujeito da proposição é um simples demonstrativo. Falso, então, porque o seu referente, muito visivelmente um cachimbo, não o verifica? Mas quem me dirá seriamente que este conjunto de traços entrecruzados, sobre o texto, é um cachimbo? Será preciso dizer: Como tudo isto é palermice e simples; este enunciado é perfeitamente verdadeiro, pois é bem evidente que o desenho representando um cachimbo não é, ele próprio, um cachimbo? E, entretanto, existe um hábito de linguagem: o que é este desenho? É um bezerro, é um quadrado, é uma flor. Velho hábito que não é desprovido de fundamento: pois toda a função de um desenho tão esquemático, tão escolar, quanto este é a de se fazer reconhecer, de deixar aparecer sem equívoco nem hesitação aquilo que ele representa. Por mais que seja o depósito, sobre uma folha, ou um quadro, de um pouco de uma fina poeira de giz, ele não reenvia como uma flecha ou um indicador apontado a um certo cachimbo que se encontra mais longe, ou algures ele é um cachimbo. Desconcerta o facto de ser  inevitável relacionar o texto com o desenho (como convida o demonstrativo, o sentido da palavra cachimbo, a semelhança da imagem) e ser impossível definir o plano que permitiria dizer  que a asserção é verdadeira, falsa, contraditória.
Não consigo tirar da ideia que a brincadeira reside numa operação tornada invisível pela simplicidade do resultado, mas que é a única a poder explicar o embaraço indefinido por ele provocado. Essa operação é um calígrafo secretamente constituído por Magritte, em seguida desfeito com cuidado. Cada elemento da figura, a sua posição recíproca e a sua relação derivam dessa operação anulada desde que foi completada. Por trás desse desenho e dessas palavras, antes que literalmente nome de um cachimbo, expressão corrente, eufemismo que substitui a exclamação nom de Dieu, considerada na França como pesada blasfémia. Um pouco da maneira como o nosso PDI substituído pelo Charme da Vida. No entanto, a ausência de semelhança entre a palavra Dieu e a palavra pipe sugere que a substituição se fez pela facilidade de pronúncia. Uma mão tenha escrito o que quer que seja, antes que tenham sido formados o desenho do quadro e nele o desenho do cachimbo, antes que de lá em cima tenha surgido esse grande cachimbo flutuante, é necessário supor, creio eu, que um calígrafo foi formado e, em seguida se descompôs. Tem-se aí a constatação do fracasso e os restos irónicos.
Na sua tradição milenar, o calígrafo tem um tríplice papel: compensar o alfabeto; repetir sem o recurso da retórica; prender as coisas na armadilha de uma dupla grafia. Ele aproxima, primeiramente, do modo mais próximo um do outro o texto e a figura, compõe com linhas que delimitam a forma do objecto juntamente com aquelas que dispõem a sucessão das letras; aloja os enunciados no espaço da figura, e faz dizer ao texto aquilo que o desenho representa. De um lado, alfabetiza o ideograma, povoa-o com letras descontínuas e faz assim falar o mutismo das linhas interrompidas. Mas, inversamente, reparte a escrita num espaço que não tem mais a indiferença, a abertura e a alvura inertes do papel; impõe-lhe que se distribua segundo as leis de uma forma simultânea. Reduz o fonetismo a não ser, para o olhar de um instante, senão um rumor acinzentado que completa os contornos de uma figura; mas faz do desenho o fino envoltório que é necessário traspassar para seguir, de palavra em palavra, o esvaziamento de seu texto intestino. O calígrafo é, portanto, tautologia. Mas no oposto da retórica. Esta emprega pletora da linguagem, serve-se da possibilidade de dizer duas coisas com palavras diferentes; usufrui da sobrecarga de riqueza que permite dizer duas coisas diferentes com uma única e mesma palavra; a essência da retórica está na alegoria. O calígrafo, quanto a ele, serve-se dessa propriedade das letras que consiste em valer ao mesmo tempo como elementos lineares que se pode dispor no espaço e como sinais que se deve desenrolar segundo o encadeamento único da substância sonora». In Michel Foucault, Isto Não é Um Cachimbo, Editora Paz e Terra, 1973, tradução de Jorge Coli, 1989/2004, ISBN 978-857-753-031-1.

Cortesia EPTerra/JDACT