O Poema do
Cid, uma epopeia heterodoxa
«O Poema do Cid pertence ao momento de apogeu
ou plenitude do género épico na Espanha e, composto provavelmente por volta
de 1140, antes que florescesse o
lirismo galaico-português, é o primeiro monumento conhecido das literaturas
ibéricas. É uma composição de 3.735 versos, que chegou aos nossos dias
incompleta e cujos episódios perdidos, sobretudo do início, podem ser
reconstituídos, como o fez Ramón Menéndez Pidal, por meio da prosificação da
chamada Crónica de vinte reis. O único manuscrito que nos chegou data provavelmente do século
XIV, ano de 1307 e leva ao final o
nome de um certo Per Abbat que, embora tendo sido dado por algumas opiniões
como o autor do poema, sabe-se hoje ter sido apenas um copista. Facto
semelhante acontece com a gesta francesa La chanson de Roland, em cujo manuscrito aparece o nome
de Turoldus, num verso de difícil interpretação, que poderia levar ao
autor, porém, mais provavelmente, leva ao copista, como acontece na gesta castelhana.
Temos, portanto, nas duas literaturas, uma obra anónima, coisa comuníssima à
época da elaboração das epopeias, a Chanson de Roland é um pouco anterior ao Poema
do Cid e data
provavelmente de 1100. O que importa
deixar claro, tanto num caso como no outro, é que, abandonadas certas teorias,
como a das cantilenas ou dos cantos épicos primitivos, e assim a crença numa
obra colectiva, como que nascida do espírito do povo, pode-se afirmar que os
dois poemas são obras de autor anónimo, com um projecto definido e um estilo próprio,
embora aproveitando factos, em maior ou menor grau, já conhecidos. Em se
tratando do Poema do Cid, o
hispanista Menéndez Pidal admite a colaboração de dois jograis no texto: um
para os dois primeiros cantares (o do Desterro e o das Bodas) e outro para o terceiro (o da Afronta
de Corpes), com toques
no segundo e ainda talvez no primeiro, o que não remete de modo algum à antiga
teoria da elaboração colectiva impessoal, mas sim a uma refundição ou colaboração,
prática comum à época, na literatura espanhola. Outra coisa que se pode afirmar
é que o autor ou autores são da região de Castela, provavelmente de Medinaceli
e/ou San Esteban de Gormaz, pelos inúmeros pormenores com que são
descritas tais regiões.
A
poesia épica castelhana recebeu inspiração da épica francesa, pois os jograis
castelhanos do século XII conheciam já as gestas francesas. A imitação francesa
que se pode encontrar no Poema está
em alguns traços estilísticos, tais como: a repetição do indefinido tanto nas enumerações descritivas que
costumam ir encabeçadas pela forma verbal veríeis (Veríeis tantas lanças, tanta adarga, tanta loriga, tantos pendões
etc.); as orações, implorando a protecção de Deus, como a de dona Ximena pelo
Cid desterrado; a expressão de que se serve o poeta do Cid para apresentar as suas personagens
chorando: chorar dos olhos, que
aparecem todas no Roland e
outros poemas franceses mais antigos. Acrescente-se a isso que a métrica do Cid e, em geral, de todas as manifestações
da poesia épica castelhana, é produto de uma imperfeita imitação das laisses ou versos monorrímicos e da divisão
do alexandrino francês em dois hemistíquios. Certas coincidências na fraseologia,
que se notam entre o Cid e
os poemas franceses, poderiam servir também como prova da influência destes.
Assim, por exemplo, quando o poeta chama sua pátria Castela, a gentil, não faz mais do que expressar o amor e a admiração
que nele desperta a terra castelhana, com uma fórmula poética concebida sob a
influência da douce France da Chanson
de Roland.
Todos
estes casos de influência e de imitação deixam intacta, entretanto, a
originalidade do Poema do Cid e,
ainda mais, embora haja influências, o poema castelhano distingue-se da gesta
francesa por uma série de peculiaridades notáveis que nos levaram ao título
desta apresentação. A nossa intenção, ao colocar o Poema do Cid como uma epopeia heterodoxa é,
comparando-o à Chanson de Roland,
considerada aqui como modelo da épica medieval cristã, depreender suas
peculiaridades em relação ao poema francês, que o tornam, ousamos dizer, uma
narrativa contra-ideológica, no que diz respeito à ética e à estética
medievais, ou melhor, aristocrático-feudais. Tal comparação é possível e viável
na medida em que existe um solo comum sobre o qual assentam as diferenças, isto
é, os dois poemas são muito parecidos: do mesmo género, aproximadamente da
mesma época, geograficamente próximos, tanto no que diz respeito ao lugar de
produção quanto ao espaço ficcional. Além disso, ambos tematizam a luta cristãos
vc mouros como um diálogo sangrento entre a cruz e o crescente. Se está criado
o solo comum, que são as semelhanças, podemos trabalhar com as diferenças que
se estabelecem, por exemplo, na maneira de tematizar a luta, de construir o herói,
e até na linguagem, tomada aqui como um conjunto de técnicas e procedimentos
peculiares ao poema épico e dos quais o autor da gesta espanhola se afasta,
queremos crer, deliberadamente.
É
nossa intenção, a partir do estabelecimento de tais diferenças, recorrer ao
contexto social em que os dois jograis criaram as suas obras, comparando-os
também, e buscando nestes contextos e na relação artista-público por eles
proporcionada, uma explicação possível e até provável para a heterodoxia do Poema
do Cid. Nosso método de
trabalho é, portanto, de um lado, a comparação dos textos, à luz de modernas
teorias sobre o épico, fazendo, quando necessário, adaptações do homérico ao
cristão medieval, e de outro a dos contextos, principalmente com base em estudos
de Menéndez Pidal, Américo Castro e Sánchez-Albornoz. Para traçar um eixo de
comparação entre as duas obras, tomamos a liberdade de dar a cada uma delas um
subtítulo: Chanson de Roland, o mundo dado e Poema do Cid, o mundo comentado. De um lado, no
poema do feudalismo francês stricto sensu, em que se apresenta, dentro do maniqueísmo característico da época
e de sua épica, um mundo perfeitamente organizado, que se mostra acabado aos
olhos do homem e que se divide em bons e maus: chrétiens ont raison, payens ont tort. Por outro lado, voltamo-nos
para o poema espanhol em que o maniqueísmo está extremamente debilitado e frequentam
o cosmos que é o poema (no sentido de que toda obra literária é sempre um
cosmos) todas as classes sociais, que têm voz e criticam os homens e o
mundo, dentro de um contexto que foge ao feudalismo estrito e permite a um
historiador dizer que Castela é uma ilhota de homens livres no seio da Europa
feudal». In Anónimo, Poema do Cid, Epopeia heterodoxa, tradução de Maria Lima Almeida,
Clásicos Castellanos de la Lectura (Madrid,
1913), Nueva Biblioteca Biliken, 1988, Poesia espanhola medieval, ISBN
852-650-123-2.
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