O
enigma do Santo Sudário. 1502. Florença
«A luz transparente da manhã
fazia cintilar a água da fonte que ficava no centro da Piazza delta Signoria,
em Florença; essa mesma praça que, alguns anos antes, havia presenciado a
morte na fogueira do iluminado Savonarola e que abrigaria orgulhosa, pouco
depois, o colossal David, de Michelangelo. Passeando em volta da fonte,
um homem impecável e elegantemente vestido, com uma ampla túnica rosada,
parecia estar absorto em seus pensamentos, alheio à agitação da praça, ao som das
rodas das carruagens nos paralelepípedos, às vozes dos mercadores e das
vendedoras, ao movimento dos funcionários do Palazzo Vecchio e da Logia
delt'Orcagna. Distinguia-se por seu tamanho, e a barba prateada que ostentava
inspirava respeito, que era acentuado pela expressão de seu rosto, de rara
beleza, pelo seu olhar profundo e seu caminhar majestoso. Era o Divino
Leonardo
Da Vinci, que contava então com 50 anos e há vários meses trabalhava
como engenheiro militar, a serviço de César Bórgia. Leonardo reflectia sobre
uma nova ordem de seu patrão, uma obra de difícil execução e complexa, que ficava
entre a arte e a ciência. A confiança de Bórgia nas suas aptidões era grande,
já que havia conseguido planear com êxito a defesa das fortalezas que aquele
possuía em Roma. Mas isso era muito diferente, uma incumbência que devia ser
mantida sob o maior sigilo e que Leonardo não estava certo de poder cumprir.
À medida que o sol de fim de Verão,
esplendoroso, desenhava seu arco sobre o horizonte, o movimento da praça ia
diminuindo. Era meio-dia, e quase todos estavam almoçando ou descansando do
trabalho da manhã. Mas Leonardo seguia, imperturbável, dando voltas tranquilas
ao redor da fonte, com o olhar longe, sossegado, perdido em lugares muito
distantes. Subitamente, o Divino levantou os olhos, muito
abertos, na direcção do Astro Rei. As suas pupilas se contraíam ao receber a
fúlgida luz. Deslumbrado, virou os olhos, baixando a cabeça, e os fixou no piso
da praça. Manteve-se imóvel por alguns instantes e depois saiu correndo. Suas
passadas eram largas; teve de levantar a túnica com as mãos para que não
tropeçasse nela e caísse. No seu rosto, a expressão de um menino entusiasmado. Atravessou
a praça, passando em frente ao Palazzo Vecchio e deixando para trás os
grandes arcos da Logia, e dirigiu-se a toda velocidade a seu ateliê,
situado muito perto dali. Quase foi atropelado por uma carruagem ao virar a
esquina, mas nem isso o deteve. Parecia possuído, talvez pelo génio criador de
um artista incomparável. E, ainda que costumasse parecer tranquilo, sereno, sempre
pensativo, quando uma ideia com a força de uma torrente o invadia, era capaz de
comportar-se como um rapazote.
Às vezes, no seu trabalho, a
energia parecia tomar conta dele, enquanto em outras ocasiões passava horas e
horas, até mesmo dias, num estado contemplativo. A inspiração era metade de sua
genialidade; a outra metade, a reflexão intelectual. Por isso havia adquirido
fama de artista lento e parcimonioso, o que demonstram os três anos investidos
em pintar sua obra-prima, a Santa Ceia, em uma parede do refeitório de Santa
Maria delle Grazie, em Milão. Uma semana antes, César Bórgia o havia feito
ir até Roma. Apesar de Leonardo estar a serviço dos Bórgia, que não eram muito
populares em Florença, ele conseguira permissão para viver na cidade que era
tão próxima a Vinci, sua cidade natal. No meio da noite um emissário o
despertou com uma mensagem de César: deveria acompanhá-lo imediatamente, sem
perder tempo com preparativos. Leonardo tinha um espírito afável, porém
reservado e independente, e por isso sentia-se contrariado quanto tinha de
atender aos caprichos dos diferentes patrões para quem trabalhara ao longo de
sua vida. E César Bórgia era, além disso, uma figura intrigante. A auréola que
o rodeava e a fama dos terríveis crimes que possuía faziam estar sempre alerta
quem se relacionasse com ele. Era difícil saber o que se passava na sua mente,
já que o seu rosto nunca expressava as suas íntimas e verdadeiras intenções.
Podia estar sendo devorado pelos lobos e, ainda assim, sorrir e disfarçar a
dor; um homem brilhante e perspicaz, que, não obstante, raras vezes se
comportava com autêntica naturalidade, sempre oculto sob a impassível máscara
da astúcia e do cinismo.
Quando
Leonardo chegou a Roma, foi conduzido directamente ao palácio do Vaticano,
residência do Sumo Pontífice. Ali, César e seu pai, Rodrigo, papa com o nome de
Alexandre VI, o esperavam com impaciência. Naquela época, a fama de Da Vinci já
era grande na Itália, França e no restante da Europa. Todos o apreciavam como
artista magistral e competente engenheiro, sendo que num sentido moderno quase
poderia ser considerado o pai da engenharia. E, ainda que a admiração de seus contemporâneos
não o envaidecesse, fazia com que fosse tratado com profundo respeito. Por
isso, os Bórgia demonstravam consideração e amabilidade, tratando-o com
delicadeza, algo que não costumavam fazer com a maioria de seus servidores ou protegidos.
A agitação dos dois cabeças da poderosa família se devia a um facto ocorrido
nos dias anteriores, instigado por eles mesmos tempos atrás, mas que tivera um
resultado repentino e inesperado. César havia tomado conhecimento, em livros e
documentos que estavam guardados na Biblioteca Vaticana, de lendas que
relatavam os poderes do mítico Sudário com a imagem de Jesus, o Lençol no qual
o humilde galileu fora amortalhado após morrer na cruz e no qual havia estado
envolvido, segundo as Escrituras, duas noites e um dia antes de sua
ressurreição. Desde a metade do século XV, o tal sudário encontrava-se sob
possessão de uma das dinastias italianas mais poderosas, os Sabóia, que, após
um rande número de disputas, o haviam recebido como legado de seus anteriores
curadores, os franceses Charny. César queria ter o Sudário para si, o símbolo
protector que conservaria e aumentaria seu poder e talvez apagasse os vestígios
de suas atrocidades». In David Zurdo Ángel Gutierrez, O Último
Segredo de Da Vinci, O enigma do Santo Sudário, Editora Novo Século, 2005, ISBN
858-891-696-7.
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