«Este texto apresenta-se no Espólio
(depositado na Biblioteca Nacional de Lisboa) em folhas soltas, não datadas,
umas manuscritas, outras dactilografadas e outras ainda mistas. A numeração foi
posteriormente introduzida pelos inventariadores do dito espólio mas não
corresponde a qualquer sequência. O texto estende-se por dezanove folhas (21
páginas). As folhas são, em geral, encimadas pelo título Hora do Diabo,
(nove vezes), A Hora do Diabo (duas vezes), Noite do
Diabo (duas vezes), em dois casos escrito em inglês, Devil's Night,
apesar do texto ser em português. Duas delas não trazem qualquer indicação». In
Nota.
A
Hora do Diabo
«Saíram
do terminus, e, ao chegar à rua, ela
viu com pasmo que estava na própria rua onde morava, a poucos passos de casa.
Estacou. Depois voltou-se para trás, para exprimir esse pasmo ao companheiro;
mas atrás dela não vinha ninguém. Estava a rua, lunar e deserta, nem havia nela
edifício que pudesse ser ou parecer ser um terminus
de estação de comboios. Tonta, sonolenta, mas interiormente desperta e
alarmada, foi até casa. Entrou, subiu; no andar de cima encontrou, ainda
desperto, o marido. Lia, no escritório, e, quando ela entrou, depôs o livro. Então?, perguntou ele. E ela, correu tudo muito bem. O baile foi muito
interessante. E acrescentou, antes que ele perguntasse: Uma gente que estava lá no baile
trouxe-me de automóvel até ao princípio da rua. Não quis que eles viessem até à
porta. Saí ali mesmo; insisti. Ah, que cansada que estou! E, num gesto
de grande cansaço e esquecendo-se de um beijo, foi-se deitar.
Seu
filho, quando nasceu, nasceu normal de figura, mas tardou que mostrasse que era
um homem de génio. Os poemas têm uma feição estranha e lunar. Paira neles desejo
de grandes coisas, como de alguém que um dia separado, numa vida antes desta,
por sobre todas as ades da terra. Recorre em seus versos uma visão de génio onde
pontes, inexplicável por qualquer experiência que se conheça. E uma vez, num
poema escrito quase em Velho, ele diz que qualquer coisa nele fora tentada,
como isto, na grande altura de onde se vê todo o mundo. Em baixo, a uma
distância mais que impossível, travam, como astros espalhados, grandes manchas
de luz-cidades, sem dúvida, da terra. O Diabo apontou-lhas, são as grandes cidades
do mundo: aquela é Londres e apontou
uma na distância descida. Aquela é Berlim,
e apontou outra. E aquela, ali, é Paris.
São manchas de luz a treva, e nós, nesta ponte, passamos alto sobre elas,
crédulos do mistério e do conhecimento. Que coisa tão pavorosa e tão bonita! O que é aquilo tudo ali em baixo?
Aquilo,
minha senhora, é o mundo. Foi de aqui que, por incumbência de Deus, tentei
seu Filho, Jesus. Mas não deu resultado, como eu já esperava, porque o Filho
era mais iniciado que o Pai, e estava em contacto directo com os Superiores
Incógnitos da Ordem. Foi uma provação, como se diz em linguagem iniciática,
e o Candidato portou-se admiravelmente. Não percebo bem. Foi de aqui, realmente, que tentou ao
Cristo? Foi. Está claro que, onde agora está um vale imenso, estava
então uma montanha. No abismo também há geologias. Aqui, onde estamos passando,
era o píncaro. Que bem que me lembro! O Filho do Homem repudiou-me desde além
de Deus. Segui, porque era o meu dever, o conselho e a ordem de Deus: tentei-o
com tudo quanto havia. Se houvesse seguido o meu conselho próprio, tê-lo-ia
tentado com o que não pode haver. Talvez a história do mundo em geral, e a da
religião cristã em particular, tivessem sido diferentes. Mas que podem contra a
força do Destino, supremo arquitecto de todos os mundos, o Deus que criou este,
e eu, o Diabo distrital, que, porque o nega, o sustenta? Mas
como é que se pode sustentar uma coisa por a negar?
É
a lei da vida, minha senhora. O corpo vive porque se desintegra, sem
se desintegrar demais. Se não se desintegrasse segundo a segundo, seria um
mineral. A alma vive porque é perpetuamente tentada, ainda que resista. Tudo
vive porque se opõe a qualquer coisa. Eu sou aquilo a que tudo se opõe. Mas, se
eu não existisse, nada existiria, porque não havia a que opor-se, como a pomba
do meu discípulo Kant que, voando bem no ar leve, julga que poderia voar melhor
no vácuo. A música, o luar e os sonhos são as minhas armas mágicas. Mas por
música não deve entender-se só aquela que se toca, se não também aquela que fica
eternamente por tocar. Por luar, ainda, não se deve supor que se fala só do que
vem da lua e faz as árvores grandes perfis; há outro luar, que o mesmo sol não
exclui, e obscurece em pleno dia o que as coisas fingem ser. Só os sonhos são
sempre o que são. É o lado de nós em que nascemos e em que somos sempre
naturais e nossos. Mas, se o mundo é
acção, como é que o sonho faz parte do mundo?» In Fernando Pessoa, A Hora do Diabo,
História e Alcance, Assírio e Alvim, Lisboa, 1997, ISBN 978-972-370-435-8
Cortesia
AAlvim/JDACT