A
Madrinha
«(…) Achou melhor não partilhar o
mistério com o marido, para evitar angustiá-lo sem motivo e também porque não
iria acreditar em coisas que pareciam vindas do demónio. A sua juventude fez
com que esquecesse no dia seguinte o aviso funesto. E quando, na hora da morte,
passou em revista os momentos e as pessoas mais importantes da sua vida, entre
as quais estavam os seus filhos, ao lembrar-se daquele sussurro esboçou um
sorriso e disse à sua filha Eugénia: Morro sossegada, sei que está bem e nada faz prever que o seu destino
mude.
A
Bastarda
Naquele fim de tarde primaveril
do ano de 1859, na ilha da Madeira,
mergulhando o olhar nesse mar que lhe provocava um magnetismo de feitiço,
Eugénia Maria Meneses Smith sentiu a necessidade de aliviar a sua mente do
segredo da sua paternidade. Não havia espaço nela para nenhuma outra dor,
porque ver morrer um pouco cada dia a única filha que lhe restava lhe ocupava o
corpo todo. E aos 56 anos já lhe era insuportável conviver com o sentimento de indignação
que a acompanhava desde a infância pela injustiça que fora cometida com a sua
mãe e consigo própria. Tantas vezes ouvi a tua avó contar a história dos
preparativos e da festa do seu baptizado exactamente como os descrevera a sua
mãe que quase poderia reproduzir de memória os detalhes mais ínfimos, como o
cheiro das flores e dos cozinhados, o tilintar dos copos e talheres, a voz grave
do padre obeso e a satisfação da tua bisavó Maria José quando deitaram na
cabeça da sua primeira menina a água do jarro de prata com que foram
purificados todos os recém-nascidos da família Meneses (menos eu), porque ela,
com os seus desvelos de pássaro, tinha mandado aquecer ligeiramente a água
antes de ser benzida. A tua avó Eugénia soube, depois de muitos anos, que no
fim dos festejos, quando a mãe a levantou do berço, não era a emoção do sacramento
que a fazia tremer por dentro, mas sim uma necessidade urgente de esconjurar o presságio
com o seu corpo, fundindo-se com a filha num abraço.
E
a mãe foi baptizada como? Em circunstâncias diferentes, Isabel
Maria. O meu nascimento foi ocultado durante bastante tempo. Não percebo, mãe, porquê? O meu
nascimento ou a minha identidade, é a mesma coisa. Ainda hoje não sou quem deveria
ser. Que confusão! Se te explicar as coisas desde o princípio, vais
perceber. É o meu segredo. E é
assim tão mau que só agora mo conta? O penoso é ser um segredo. Mas não
me faças precipitar. Para entenderes o porquê de tudo o que se passou, tenho de
começar pelo nascimento da minha mãe. É a única maneira de a história fazer
algum sentido.
Novidades
da Família
Dois anos depois do baptizado de Eugénia,
nasceu outro menino na Casa do Arco, a quem chamaram António, mas dessa
vez os padrinhos foram escolhidos entre os mortais e, por serem altas
personalidades da corte, foram representados, como era costume, por um membro importante
da família. As viagens eram tão difíceis e perigosas que até para os casamentos
se recorria à procuração. A única menina da família assistiu à cerimónia do
sacramento ao pé do irmão Gregório, um pequeno senhor de oito anos que já
conhecia o seu papel de filho primogénito e ficava sempre orgulhoso de ser ele
a segurar a mão da irmã, sobretudo nos momentos em que ela demonstrava uma
maturidade pouco comum em crianças da sua idade.
Pedro e Diogo, de seis e cinco
anos, mantinham-se direitos para não amarrotarem a roupa feita de propósito
para estrearem nesse dia, olhando as fivelas dos sapatos novos com atenção ou seguindo
o voo das moscas, que tinham ido refugiar-se dentro de casa para evitar que o
calor desse final de Julho lhes derretesse as asas. Foi a última festa da
família Meneses na Casa do Arco. Durante os poucos anos que ainda lá viveram,
nada de bom lhes aconteceu para comemorar, bem pelo contrário. Geralmente, o tempo
passava numa pacatez de província e os serões só se animavam com alguma visita imprevista
ou um viajante que trazia novas da corte.
Chegaram por essa via, diluídos
pela distância, os lutos rigorosos pela morte do rei José I. Mas outro luto
cobriu o brasão da família, uma morte inesperada, muito mais próxima, justamente
a de António, o filho mais novo de todos, aquele que não parecia frágil e, no
entanto, não conseguiu resistir a uma doença comum. E, mesmo quando a boa
educação a obrigava a ser recatada, Maria José não conseguia controlar as
lágrimas, que lhe caíam dos olhos tão naturalmente que lhe davam a sensação de
que um véu lhe toldava a vista. A dor instalou-se no seu corpo e no seu tempo,
como se vivesse unicamente para sofrer». In
Cristina Norton, O Segredo da Bastarda, 2002, Oficina do Livro, 2012, ISBN
978-989-23-1047-3.
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