domingo, 8 de março de 2015

O Segredo da Bastarda. Uma história de amor, traição e intriga. Cristiana Norton. «Dois anos depois do baptizado de Eugénia, nasceu outro menino na Casa do Arco, a quem chamaram António, mas dessa vez os padrinhos foram escolhidos entre os mortais e, por serem altas personalidades da corte…»

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A Madrinha
«(…) Achou melhor não partilhar o mistério com o marido, para evitar angustiá-lo sem motivo e também porque não iria acreditar em coisas que pareciam vindas do demónio. A sua juventude fez com que esquecesse no dia seguinte o aviso funesto. E quando, na hora da morte, passou em revista os momentos e as pessoas mais importantes da sua vida, entre as quais estavam os seus filhos, ao lembrar-se daquele sussurro esboçou um sorriso e disse à sua filha Eugénia: Morro sossegada, sei que está bem e nada faz prever que o seu destino mude.

A Bastarda
Naquele fim de tarde primaveril do ano de 1859, na ilha da Madeira, mergulhando o olhar nesse mar que lhe provocava um magnetismo de feitiço, Eugénia Maria Meneses Smith sentiu a necessidade de aliviar a sua mente do segredo da sua paternidade. Não havia espaço nela para nenhuma outra dor, porque ver morrer um pouco cada dia a única filha que lhe restava lhe ocupava o corpo todo. E aos 56 anos já lhe era insuportável conviver com o sentimento de indignação que a acompanhava desde a infância pela injustiça que fora cometida com a sua mãe e consigo própria. Tantas vezes ouvi a tua avó contar a história dos preparativos e da festa do seu baptizado exactamente como os descrevera a sua mãe que quase poderia reproduzir de memória os detalhes mais ínfimos, como o cheiro das flores e dos cozinhados, o tilintar dos copos e talheres, a voz grave do padre obeso e a satisfação da tua bisavó Maria José quando deitaram na cabeça da sua primeira menina a água do jarro de prata com que foram purificados todos os recém-nascidos da família Meneses (menos eu), porque ela, com os seus desvelos de pássaro, tinha mandado aquecer ligeiramente a água antes de ser benzida. A tua avó Eugénia soube, depois de muitos anos, que no fim dos festejos, quando a mãe a levantou do berço, não era a emoção do sacramento que a fazia tremer por dentro, mas sim uma necessidade urgente de esconjurar o presságio com o seu corpo, fundindo-se com a filha num abraço.
E a mãe foi baptizada como? Em circunstâncias diferentes, Isabel Maria. O meu nascimento foi ocultado durante bastante tempo. Não percebo, mãe, porquê? O meu nascimento ou a minha identidade, é a mesma coisa. Ainda hoje não sou quem deveria ser. Que confusão! Se te explicar as coisas desde o princípio, vais perceber. É o meu segredo. E é assim tão mau que só agora mo conta? O penoso é ser um segredo. Mas não me faças precipitar. Para entenderes o porquê de tudo o que se passou, tenho de começar pelo nascimento da minha mãe. É a única maneira de a história fazer algum sentido.

Novidades da Família
Dois anos depois do baptizado de Eugénia, nasceu outro menino na Casa do Arco, a quem chamaram António, mas dessa vez os padrinhos foram escolhidos entre os mortais e, por serem altas personalidades da corte, foram representados, como era costume, por um membro importante da família. As viagens eram tão difíceis e perigosas que até para os casamentos se recorria à procuração. A única menina da família assistiu à cerimónia do sacramento ao pé do irmão Gregório, um pequeno senhor de oito anos que já conhecia o seu papel de filho primogénito e ficava sempre orgulhoso de ser ele a segurar a mão da irmã, sobretudo nos momentos em que ela demonstrava uma maturidade pouco comum em crianças da sua idade.
Pedro e Diogo, de seis e cinco anos, mantinham-se direitos para não amarrotarem a roupa feita de propósito para estrearem nesse dia, olhando as fivelas dos sapatos novos com atenção ou seguindo o voo das moscas, que tinham ido refugiar-se dentro de casa para evitar que o calor desse final de Julho lhes derretesse as asas. Foi a última festa da família Meneses na Casa do Arco. Durante os poucos anos que ainda lá viveram, nada de bom lhes aconteceu para comemorar, bem pelo contrário. Geralmente, o tempo passava numa pacatez de província e os serões só se animavam com alguma visita imprevista ou um viajante que trazia novas da corte.
Chegaram por essa via, diluídos pela distância, os lutos rigorosos pela morte do rei José I. Mas outro luto cobriu o brasão da família, uma morte inesperada, muito mais próxima, justamente a de António, o filho mais novo de todos, aquele que não parecia frágil e, no entanto, não conseguiu resistir a uma doença comum. E, mesmo quando a boa educação a obrigava a ser recatada, Maria José não conseguia controlar as lágrimas, que lhe caíam dos olhos tão naturalmente que lhe davam a sensação de que um véu lhe toldava a vista. A dor instalou-se no seu corpo e no seu tempo, como se vivesse unicamente para sofrer». In Cristina Norton, O Segredo da Bastarda, 2002, Oficina do Livro, 2012, ISBN 978-989-23-1047-3.

Cortesia de OLivro/JDACT