Conferências. Decifração
«(…) O pão parte-se e reparte-se tal como a Escritura se abre e
comenta. O comentário ou decifração do conteúdo do texto é assim como parti-la
em pedaços e distribuí-la como pedaços de pão. O homem interior (são palavras de Abelardo) alimenta-se e sustenta-se
do alimento espiritual, tal como o homem exterior de alimento corporal.
Metaforicamente o texto é como uma broa de pão de milho que tem uma côdea dura,
a letra, que é necessário romper para chegar ao miolo do sentido interior. Aqueles
comentários cuja leitura lenta e fastidiosa nos faz sorrir ou nos causa
desprazer são, de facto, fruto de grande erudição e de profundas meditações. Em
muitos casos representam a visão actualizada da leitura e são por isso um
manancial de informações sobre a transmissão dos textos originais: daquilo que
o tempo deixa cair como desinteressante, e daquilo que a modernidade conserva,
apesar de antigo. O texto de Pedro Abelardo está cheio dessas alusões
implícitas ao passado. Um texto medieval como este é constituído por uma
primeira camada de origem bíblica, não só nas ideias mas no próprio
vocabulário. Hoje, a leitura ou edição de um texto escrito sob o domínio desta
forma mental necessita de um conhecimento não superficial da Bíblia, da doutrina
da Igreja, da liturgia, e dos comentaristas anteriores. Uma afirmação tão
anódina, aparentemente, como até que
viesse Cristo para lhes abrir as escrituras remete para o comentário ao
Apocalipse de Vitorino Petau que diz: Hic ergo aperit et resignat, quod ipse signaverat
testamentum, isto é, foi Cristo que selou o Testamento, só ele o pode
desselar porque ele é o conteúdo da própria Escriturar que antes da sua vinda
era um texto como que enigmático. Ou para as palavras de Orígenes: Enquanto não veio Cristo, a lei estava
perdida, fechado o discurso profético, velada a leitura do Velho Testamento, e
até hoje, quando os Judeus lêem Moisés, têm um véu sobre o coração. Condenáveis
são aqueles que amam o véu e censuram os comentadores que procuram descerrar o
Véu. Outra referência, a das duas faces do texto, a espiritual e a corporal,
a littera
e o sensus interior, conduz-nos também a Orígenes que diz que o livro
escrito por dentro e por fora simboliza o sentido espiritual (por dentro) e o
sentido literal (por fora). De facto, a busca de sentido per allegoriam foi o
método mais comum seguido pelos comentadores patrísticos e medievais. Só no
âmbito da Patrologia o substantivo allegoria (busca de isotopias no
domínio da fundamentação da fé) ocorre 2316 vezes, número extraordinariamente
elevado em relação à ocorrência de tropologia (sentido moral) 704
vezes, e de anagoge e anagogia (sentido escatológico) 441 vezes. Foi mesmo
criado o verbo allegorizare, formado a partir do grego, no sentido de interpretar alegoricamente. A primeira
ocorrência surge, e com razão, em Tertuliano. Estava a criar-se uma autêntica
escola de comentadores da Escritura, Tertuliano morreu em 230, que consolidava a
sua linguagem técnica e os seus métodos, com grande influência, desde o início,
do método alegórico usado por Fílon de Alexandria (primeira metade do séc. I d.
C.) e antes dele aplicado pelos estóicos ao comentário dos poemas homéricos.
Esta foi a tendência generalizada durante toda a idade patrística e medieval.
Não é necessário um estudo aprofundado da aplicação em contexto das 233 ocorrências
de
per allegoriam para termos uma ideia clara da extensão do seu
significado e dos seus usos e abusos. Darei apenas uma amostra, com a análise
de algumas ocorrências, do método por excelência da hermenêutica medieval.
E começo por Tertuliano, que passo a resumir. Trata-se de argumentar
sobre a ressurreição da carne. O que está em causa é a afirmação de Cristo caro
non prodest, o corpo de nada
aproveita não interessa, não importa, afirmação que parece prejudicar a
doutrina da ressurreição. Tertuliano, no início da sua argumentação, esclarece
que o sentido da afirmação deve ser tirado da materialidade das palavras. Uma
observação importante como ponto de partida para os limites a estabelecer na
interpretação alegórica. A seguir analisa o contexto em que a afirmação foi pronunciada:
os discípulos tinham ficado assustados quando Cristo disse que lhes daria a sua
carne a comer. Por isso corrige essa impressão dizendo que é o Espírito que vivifica e acrescentando
que a carne de nada aproveita. Onde está então a alegoria? Está
na interpretação do que se segue. Querendo Cristo significar o que se deve
entender por Espírito, prosseguiu à maneira de explicação: As palavras que eu vos disse são espírito, são vida. Um pouco atrás
o mesmo Cristo dissera: Quem ouve as
minhas palavras... tem a vida eterna. Então, conclui Tertuliano, Cristo, ao
instituir no discurso a palavra
vivificadora, já que a palavra é espírito e vida, afirmou também que a
palavra é a sua carne porque a palavra se fez carne, e por isso deve ser
apetecida e devorada pelo ouvido, ruminada pela inteligência, e digerida pela
fé». In
Arnaldo Espírito Santo, Aperto Libri. Uma representação simbólica da
descodificação textual, Da Decifração em Textos Medievais, coordenação de Ana
Morais, Teresa Araújo, Rosário Paixão, IV Colóquio da Secção Portuguesa da
Associação Hispânica de Literatura Medieval, Lisboa 2002, Edições Colibri,
Lisboa, 2003, ISBN 972-772-425-6.
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