Uma Viúva Apaixonada
«(…) Morto este, porém o obstáculo à felicidade dos dois apaixonados
desaparecera. O bonito romance que se arquitectara em volta de um possível
idílio podia ter o auspicioso e lógico epílogo: o casamento. Ninguém duvidava de que tudo se encaminhava
nesse sentido. E da atitude de dona Leonor se depreende que o seu maior desejo,
seria realmente transformar o enteado em marido. A assiduidade do novo rei junto
dela era tão notória que até o povo, representado pelo município de Lisboa,
julgando ir ao encontro do que os enamorados mais apeteciam, pois já ninguém punha
en dúvida a existência de ilícitas relações amorosas entre eles, dirigiu uma
nensagern a cada um, rogando-lhes que se unissem pelos laços do matrimónio.
Esse enlace serviria simultaneamente todos os interesses em jogo:
primeiro, o dos namorados, que acabavam com uma situação desairosa e veriam
satisfeitas as suas mais ardentes aspirações; segundo, os do Tesouro, que já não
teria de devolver a dona Leonor o dote, caso ela regressasse a Castela, como
seu irmão Carlos V desejava; e, por fim, os dos contendores portugueses e
castelhanos, que ainda não tinham chegado a acordo acerca do destino da infanta
dona Maria, última filha de Manuel I, menina ainda de colo, que
Portugal exigia que ficasse no reino e Castela reclamava com a devolução da
mãe.
Tanto João III como sua madrasta responderam com evasivas à mensagem
popular. Supôs-se que não acediam imediatamente, para simularem surpresa ante
uma sugestão imprevista, por uma questão de pudor, de recato, salvando as aparências.
E seria realmente assim por parte de dona Leonor. Queria fingir que não admitia
sequer a hipótese de que já houvesse relações pecaminosas entre ela e o
enteado, um homem que legalmente se encontrava no lugar de seu filho. As
evasivas de João III, porém, exprimiam o verdadeiro estado do seu espírito. É
que, talvez depois de saciado o interesse do adolescente pela mulher apetecida,
já não experimentasse grande empenho em recebê-la como esposa.
O que o animava ainda era o orgulhoso capricho de contrariar o imperador
Carlos V, que tinha interesse em readmitir de novo a irmã na sua corte, onde
voltaria a ser um valor negociável, pois queria obter a paz com a França em troca
dela, oferecendo-a em casamento a Francisco I daquele reino. Seria urn elemento
de conciliação e um trunfo inestimável da sua estratégia política para o domínio
da Europa. Dona Lecnor, porém, não se mostrava nada interessada em solucionar
com o sacrifício do seu amor os problemas do irmão.
Os boatos daqueles amores teriam chegado aos ouvidos de Carlos V e o
seu remate num enlace contrariava-lhe os planos. Por isso, nomeara Cristóvão
Barroso seu embaixador em Portugal, corn a missão específica de vigiar os actos
da viúva que ele queria oferecer em segundas núpcias ao rei de França. Por
sinal, este fiel servidor castelhano caractetizou-se pela arrogância e pelo
excesso de zelo, imperdoáveis num diplomata. Mais parecia um cão de guarda do
que um embaixador. Sucedeu que, lavrando a peste em Lisboa, calamidade que à
força de frequente já não causava estranheza a ninguém, resolveu a corte
transferir-se para a margem sul (não será margem esquerda?, JDACT) do Tejo. A
viúva dona Leonor foi-lhe no encalço. Apenas
para fugir ao flagelo? Não.
Toda a gente sabia que ela só desejava achar-se perto do enteado. E as visitas
deste tornaram-se mais notórias e descaradas. Entretanto, Carlos V e João III
discutiam diplornaticamente o destino a dar à infanta dona Maria,
última filha de Manuel I e de dona Leonor. Não queria esta separar-se da
menina, o que lhe serviria de óptimo pretexto para ficar em Portugal junto do
homem amado. Contudo, acerca da sugestão de casar-se com o monarca, declarava comedidamente
não poder tomar qualquer resolução sem que seu irmão Carlos V se pronunciasse.
E o tempo ia correndo e as visitas do enteado continuavam». In
Mário Domingues, D. João III, o Homem e a Sua Época, Evocação Histórica,
Livraria Romano Torres, Lisboa, 1962.
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