quinta-feira, 5 de março de 2015

O Segredo da Bastarda. Uma história de amor, traição e intriga. Cristiana Norton. «O homem, num gesto espontâneo para proteger os olhos, deu sem querer um puxão nas rédeas que descontrolou os cavalos, fazendo com que a roda traseira batesse num bloco de granito»

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A Madrinha
«Imaginava que ninguém me levaria a fazer uma viagem sem o meu consentimento porque, sendo quem sou, um desejo real não podia ser mais importante do que a minha vontade. Não nego que por vezes a falta de luz me provoca uma nostalgia de águia e preciso de me elevar às alturas para sentir a imensidão do céu. Porém, nesse momento estava mais inclinada a ficar onde estava. Quando a mãe da recém-nascida me escolheu para ser madrinha de baptismo, não cheguei a recusar o convite, porque frei Anselmo, senhor da casa onde eu morava, pensou que eu não demonstrava qualquer entusiasmo por excesso de modéstia. Nada de menos verdadeiro. O motivo que me levava a não querer aceitar tomar a meu cargo a pequena Eugénia era conhecer, melhor do que ninguém, os limites que me impuseram ao assumir as minhas funções. E, assim, frei Anselmo, orgulhoso de me terem escolhido, apressou-se a agradecer a honra que nos faziam, antes de eu poder, não digo falar, que a mudez não me permitia dizer de viva voz o que pensava, mas pelo menos manifestar de alguma maneira o meu descontentamento. O consentimento foi interpretado como meu e provocou tanta alegria no palácio que as infantas se puseram a bordar o vestido que levei na cerimónia, falando dele como as suas melhores vestes, como se eu, se quisesse, não tivesse podido usar roupas celestiais. Um dia, paramentaram-me com aquelas sedas pesadas por serem debruadas a ouro, e frei Anselmo e o pajem Damasceno andaram durante duas horas à minha volta, suando pelo esforço de me encaixarem no banco do coche, obedecendo à ordem expressa das princesas de não me amarrotarem o dito vestido. Elas seguiam os preparativos através dos rectângulos de vidro das janelas do Paço, pondo-se em bicos de pés e fazendo tanto alvoroço que, no fim, confundiram o meu amuo com a paciência de uma santa.
Depois de encontrarem forma de me proteger, a mim e ao precioso trajo, pensei que finalmente iríamos partir, porque escasseava o tempo para chegar na data marcada para o baptizado. Mas não foi assim, o pajem e os cocheiros pediram licença para adiar a partida até à manhã seguinte por causa do calor, e passei a minha primeira noite fora de casa, expressão que o pajem Damasceno encontrou para não dizer às infantas que eu ficaria ao relento. Antes da madrugada, os dois cocheiros e o pajem atrelaram os cavalos no maior dos silêncios e saímos lentamente do Paço rodeados pela escolta, deixando atrás de nós um suave eco de cascos. Eu, que sempre me sentira bem na minha casa, olhando pelo portão de entrada os telhados prolongarem-se até ao rio, vi-me presa num cubículo de madeira, sofrendo os solavancos do caminho que me levava a Guimarães, coberta com um pano de veludo leve para me proteger do pó que o vento levantava nas estradas e penetrava pelas frinchas da carruagem. A minha viagem fora longamente discutida na corte, porque cada proposta levantava novas questões e não se conseguia acordo sobre a melhor maneira de me fazerem chegar ao meu destino. Pessoalmente, teria preferido um meio de locomoção mais rápido, numa das barcaças que faziam o percurso entre a capital e o Norte. Se os caminhos são longos e perigosos, argumentou alguém, têm a vantagem de poder oferecer refúgio durante uma tormenta, enquanto no mar o único recurso é rezar o terço. Quem pode assegurar-nos de que não vai ser engolida por uma onda?
Por decisão unânime, viajei por terra. Fizemos muitas horas de mau caminho, com poeira a entranhar-se na pele e nas narinas, secando tanto as gargantas dos cocheiros, do pajem e dos soldados que, mal viam ao longe uma estalagem, a sede parecia aumentar. Enquanto os tratadores secavam os cavalos suados, verificavam as ferraduras e os levavam a comer e a descansar na sombra do telheiro das manjedouras, os meus transportadores bebiam, comiam e de noite dormiam o sono dos justos, ao qual pecadores como eles também tinham direito. O coche tinha as armas reais pintadas em cada porta e a minha escolta sentia-se segura nesses caminhos de Deus e de ninguém, por onde, além das cobras e de algum rebanho de ovelhas, também passavam salteadores que, ao reconhecerem o brasão, mudavam de rumo. Não era porque devessem estar atentos que durante a viagem os homens falavam pouco, mas por respeito à minha pessoa; e eu preferia que assim fosse, ainda que nunca o tivesse dado a entender, para poder dormitar embalada pelo chiar das rodas e o passo dos vinte e dois cavalos. Antes de chegarmos ao Porto, as colinas começaram a dificultar o bom andamento do coche e obrigaram os cocheiros a seguir um percurso mais tortuoso para as contornar. Mais a norte, para evitar os enormes penhascos, o caminho começou a estreitar em alguns troços, mas o vento do fim da tarde soprou de repente com força, levantando a terra seca e cegando por momentos o cocheiro. O homem, num gesto espontâneo para proteger os olhos, deu sem querer um puxão nas rédeas que descontrolou os cavalos, fazendo com que a roda traseira batesse num bloco de granito. O eixo cedeu e o coche deteve-se de repente, caindo bruscamente do lado esquerdo da berma, sem apoio. Enquanto os homens maldiziam a sorte com palavras pouco próprias aos ouvidos de uma dama, o pajem debruçou-se no interior do meu compartimento para ver se tudo estava em ordem, como lhe tinham recomendado mil vezes as infantas». In Cristina Norton, O Segredo da Bastarda, 2002, Oficina do Livro, 2012, ISBN 978-989-23-1047-3.

Cortesia de OLivro/JDACT