A
Madrinha
«(…) Eu continuava bem encaixada no meu lugar; a única coisa que tinha saído
do sítio era a pasta que continha os envelopes com as procurações passadas pelo
infante Pedro, convidado para padrinho de Eugénia, que, por não poder
deslocar-se, transmitira ao tio dela a honra de o representar, pois, sendo este
eclesiástico, estaria à altura de um encargo tão importante. Damasceno resolveu
deixar a pasta onde caíra e aproximar-se dos cocheiros para os ajudar a consertar
a roda, chegando no preciso momento em que o homem mais velho dizia: Isto
não é bom sinal, garanto-te eu. Partir uma roda transportando a imagem da
Nossa Senhora da Madre de Deus é mau agoiro. Para quem, não sei, mas que daqui
não vem nada de bom, isso garanto-te. Só vou ficar descansado quando
regressarmos a Lisboa sem ter acontecido mais nada. Nem parece que levamos uma
santa! Alto aí, que já começas a blasfemar e, se não fosse teu amigo e
não estivéssemos num ermo onde ninguém nos ouve, ias parar à fogueira. Olhem
o sol a querer queimar-nos vivos, disse Damasceno, que falava pouco e
gostava de gracejar para arrefecer os ânimos. Ouvi o riso dos três que, tirando
as casacas e arregaçando as mangas, se puseram a trabalhar. A escolta
aproveitou o imprevisto para desmontar, descansar as pernas e esfregar as partes
doridas do corpo, deixando que os cavalos comessem algumas ervas sem lhes
soltar as rédeas, porque não convinha que se dispersassem, não fosse alguma
quadrilha de salteadores ignorar as insígnias da casa real e aproveitar o
momento para cair sobre eles. Algumas horas mais tarde, prosseguimos a viagem,
guiados por uma lua clara e algumas estrelas que foram aparecendo, uma a uma ou
em grupos, como se tivessem estado à espera do sinal para entrar no céu, como
faziam todas as noites. Os cavalos desconheciam o caminho, mas seguiam o seu
instinto para evitar novos acidentes, tentando adivinhar os perigos entre as
sombras da noite.
A Afilhada
Na Casa do Arco, em
Guimarães, trabalhava-se para o baptizado. As raparigas do campo, levadas à
vila para aprenderem o ofício de servir mal deixavam de ser crianças, andavam
de um lado para o outro muito direitas pelo hábito de carregarem tudo à cabeça.
Enquanto umas passavam a ferro pela última vez a toalha de linho estendida
sobre a mesa grande da casa de jantar, outras escolhiam dos cestos as flores e
tufos de folhas para enfeitar o oratório, fazer o centro de mesa e os arranjos
da entrada. Encheram os cantos escuros da casa com ramos de cores e cheiros
variados, porque os pais queriam celebrar não só o baptizado, mas também a chegada
da primeira menina, depois de três rapazes, nascida em 9 de Março de 1775: Eugénia. Os faqueiros e
as travessas de prata tinham sido tirados das estantes e gavetões e já estavam a
ser areados, e também as loiças finas e os copos de cristal guardados para os
dias de festa nos armários eram limpos com panos gastos para que não largassem
cotão até ficarem a brilhar. Nas cozinhas sombrias, quatro mulheres vestidas de
preto com toucas e aventais brancos andavam de volta dos fogões: uma a atiçar o
fogo; outra a bater gemas para o arroz-doce; a terceira a vigiar as peças de
carne postas no forno de lenha a assar lentamente e que, depois de algumas
horas, ficavam tão tenrinhas que se desfaziam na boca; a última polvilhando de
açúcar e canela as filhós acabadas de fritar.
No pátio, os criados tinham
montado um espeto de ferro apoiado noutros que acabavam em forma de forquilha,
onde aloiravam dois leitões mortos na véspera. Já o borrego tivera um tratamento
diferente, requintes como descansar dois dias e duas noites dentro de uma calda
de vinha-d’alhos, para depois ser aberto e posto com as patas esticadas a
apontarem os cantos da grade, fazendo crepitar os tições de carvão com a
gordura. Grelhar a carne é trabalho de homem com sapiência. Mulher
cozinha bem, mas só no aconchego do fogão, onde é rainha, repetia o velho escravo
Teseu, que não era insensível aos aromas que lhe passavam rente às largas
narinas, enquanto puxava lustro a botas, cintos e fivelas. Alheia a tudo o que
acontecia por sua causa, Eugénia dormia num berço de
pau-santo, forrado de rendas engomadas, entre lençóis suaves de cambraia.
Estava longe de imaginar que o cheiro dos bolos e doces que pareciam prometer
felicidade eterna fossem, na realidade, ilusões e lágrimas mascaradas com
quilos de açúcar.
O pajem Damasceno, os dois
cocheiros e os homens da escolta lavaram a cara e as mãos no chafariz da vila
depois de terem escovado os cavalos e tirado a terra acumulada durante a viagem
nas portas, assentos e janelas da carruagem. À hora anunciada, o coche que
transportava a madrinha sagrada subia a rua de Santa Maria e brilhava como se
fosse novo e tivesse acabado de sair do Paço. Nossa Senhora, desembaraçada do
pano de veludo de seda que a cobria, mostrava o esplendor dos seus paramentos
bordados a ouro e prata através dos vidros sem pó. Os habitantes de Guimarães,
pouco habituados a tanto movimento, foram logo alertados pelo ruído de muitos
cascos de cavalos a pisarem a calçada e, adivinhando quem estava a chegar,
correram à rua principal para a ver passar. Um silêncio de recolhimento prendeu
as pessoas aos seus lugares, como se tivessem sido hipnotizadas pelo brilho do
cortejo e um sentimento redobrado de fé as fizesse sentir cheias de luz». In Cristina Norton, O Segredo da
Bastarda, 2002, Oficina do Livro, 2012, ISBN 978-989-23-1047-3.
Cortesia
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