NOTA: De acordo com o original
«(…) Activo,
laborioso, perspicaz, ninguém venceu ainda com maior denodo os mil embaraços que
a todo o momento se levantam no palco e na sala de um theatro lyrico. Conhecendo
o publico e os artistas, sabendo entreter ambos, e alcançar de ambos quanto queria,
amável, cortez, engraçadíssimo, obtinha da primadonna uma opera a mais, do tenor
uma opera a menos (para a dar ao outro e contental-o) sem empregar para isso senão
o seu modo jovial, communicativo, que desarma pelo chiste e pelo tom irresistivel
e attrahente de mocidade. Valdez foi durante annos o typo curiosíssimo
do empresário cavalheiro e rapaz; gostando de musica, de boa mesa, de bons vinhos,
de conversação, de alegria; gostando de viver emfim, e sabendo como se vive, sem
egoismo, sem vistas mesquinhas, rasgadamente; tendo amigos, gostando de os ter,
e merecendo tel-os. Como empresário conseguiu saber-se entender com o governo, com
o Estado, com o publico, com a nação no que ella tem mais intelligente e distincto
entre os seus membros, e foi sempre o representante do S. Carlos antigo, theatro
aristocrático e estróina. Foi o Medicis do theatro lyrico em Portugal!
D.
Maria
Mal
fadado. Abriu para fechar: primeira ratice! Em 49, no dia dos anos do sr. D.
Fernando, que ainda não era rei artista, mas que era rei bom homem, sempre prompto
para aturar qualquer representação de principio ao fim, em companhia da sua famiha,
com vivas demonstrações de agrado, inauguroú-se o theatro, dando a traducção de
uma peça franceza, O sr. de Dumbiky,
que levou a mais formidolosa pateada por entre todo o regosijo d'aquella noite de
gala, pateada que foi a única coisa que se ouviu bem, porque do que os actores disseram
pouco se percebeu, queixando-se por isso o publico e a imprensa de que o theatro
não era acústico.
Fecharam-o
no dia immediato, fizèram-lhe novas obras, pozeram aqui, tiraram alli, ficou peor,
e abriu com o Magriço, drama histórico
de outro, de outro magriço, chamado Aguiar
Loureiro, um litterato que rebentou como um cogumello considerado venenoso, e não
se deixando saborear, a poder dos abrimentos de bocca que suscitava. Refrescaram
aquelle caso com os Dois renegados,
do sr. Mendes Leal, que foi por muito tempo o drama de salvação para onde appellavam
as jangadas theatraes. Cantou ainda a xácara a sr.ª Tallassi e foi como que
o despedir do palco para essa actriz que havia sido a Mademoiselle George de Portugal.
Mulher esbelta, formosa em tempos a que o meu olhar nunca alcançou, instruida o
sufficiente para não escalavrar o estilo aos auctores, dando-se o chic de arranhar o seu bocado de francez,
prenda n'essas epochas mui citada, traduzindo uma comedia ou outra nem melhor nem
peor do que sempre em geral por cá se fez, e ostentando uma reputação de virtude
que chegava para a companhia toda, a não querer aspirar ao premio Montyon. As famílias
indicavam-a a dedo; e diziam com veneração: É
uma senhora.
Isto queria
dizer que não mudava de amante como quem muda de luvas, e que fazia gosto em dar
um exemplo ao mundo de que também no tablado pode haver Lucrecias. O que tornava
ainda mais pesada a idéa d'aquella virtude famosa, era o tom em que a actriz declamava;
antiga escola, escola da cantilena, do sublinhar de intenções, dos grandes tons,
e grandes geitos e tregeitos. Tudo affectado, assoprado, maneirado, tudo grandiloquo,
tudo magestatico!... Não cheguei a poder formar idéa clara do talento d'esta artista;
isto é, já ella não representava os seus verdadeiros papeis, quando a vi; e n'esses
em que ainda cheguei a vêl-a, os Dois
Renegados por exemplo, tinha de combater a edade, a estatura, a nutrição,
e de sujeitar tudo isso a parecer-se com uma donzella de dezeseis annos,
apaixonada, terníssima, ideal, toda suspiros, ais d'amor, bailadas, delirios...
Morte
e affronta ao assassino,
Morte
e affronta ao renegado!
Era difficil... E oxalá fora impossível! Isto não impede, e
folgo de lhe render esse tributo de justiça, que ella de uma occasião me haja produzido
uma impressão profunda e commovente. Encontrando-a um dia no Rocio, logo depois
da lei da reforma a haver afastado do theatro, e suppondo que ella própria estimaria
isso, dei-lhe os parabéns de estar livre do tablado. As lagrimas que lhe rebentaram
espontaneas e copiosas, fizeram-me comprehender toda a singularidade da exasperação
dolorosa de uma artista, que sobrevive a si própria, passeando pela cidade. A morte
parecer-lhe-hia pouco, em comparação de similhante desgraça: ao menos, ao seu tumulo
iriam lançar-lhe corôas». In Júlio César Machado, Os Teatros de
Lisboa, Ilustrações de Bordalo Pinheiro, Livraria Editora Mattos Moreira, 1874,
PN 2796 L5M25, Library Mar 1968, University of Toronto.
Cortesia de LEMMoreira/1874/Bordalo Pinheiro/JDACT