«(…) Deste modo, a bula é, com toda a certeza, uma das fontes
históricas consultadas pelo organizador e redactor da Vita Tellonis.
Como a Chancelaria pontifícia adoptou o ano da encarnação segundo o cômputo de
Florença, e a sua utilização é a regra que foi utilizada normalmente, quer nos
diplomas medievais portugueses, quer no panorama epigráfico, somos levados a
admitir que teria sido também esse o critério usado na Vita Tellonis.
O mesmo texto informa-nos que lançaram, pois, a primeira pedra de
fundação no dia 28 de Junho, vigília dos príncipes dos Apóstolos Pedro e Paulo,
donde se deduz que a data de fundação do mosteiro de Santa Cruz é o dia 28
de Junho de 1131. Conforme nos
mostra um documento datado do dia seguinte, o arcediago Telo fez nessa altura a
doação dos banhos régios, que tinha recebido de Afonso Henriques em
Dezembro do ano anterior, ao mosteiro de Santa Cruz, onde se ergueria a igreja conventual.
Na Vita Theotonii
Por sua vez, na Vita Theotonii refere-se que na
era de 1170, pois, ou seja no ano da Incarnação do Filho de Deus de 1132, se
reuniram em vida de comunidade. Seguem-se duas datas que também se
encontram na Vita Tellonis: a data de início da construção do
mosteiro a 28 de Junho, já referida, e a de 24 de Fevereiro do ano seguinte, em
que se inicia a vida canónica. A expressão latina original desta última data Sexto
autem kalendas Martii sequentis in capite ieiunii merece a nossa
atenção não só pela referência ao jejum quaresmal que se iniciaria na
quarta-feira de cinzas, mas também por não ser clara relativamente ao problema
da contagem das calendas nos anos bissextos. Rigorosamente, o autor deveria ter
escrito bis VI.º Kalendas Martii, de forma a registar
inequivocamente o dia 24 de Fevereiro. Note-se que este dia vem assinalado na Vita
Tellonis no ano da encarnação de 1131,
segundo o cômputo florentino (que termina a 24 de Março de 1132 e tem a
indicção 5), ou seja, a 24 de Fevereiro de 1132. Por sua vez, como a Vita Theotonii assinala o
mesmo dia no ano da encarnação de 1132,
parece que o cálculo foi feito pelo cômputo de Pisa. Só nesta situação é que o
dia 24 de Fevereiro corresponde ao ano do nascimento de 1132, perfazendo os 38 anos de diferença relativamente à Era Hispânica.
Poderia ser um caso raro da utilização entre nós do cômputo pisano, dado que só
assim é que a informação que veicula é compatível com a da Vita Tellonis.
De facto esta fonte devia ser bem conhecida do seu autor, pois é por ele
explicitamente nomeada como se depreende do parágrafo seguinte: Se
alguém, aliás, quiser saber mais pormenores sobre a localização do sítio e dos
privilégios do Mosteiro, leia a obra do Mestre Dom Pedro Alfarde. Mas,
com esta relação de dependência claramente estabelecida, e a sua produção
separada no tempo por apenas sete anos, pareceu-me estranho que houvesse
mudança do cômputo de Florença para o de Pisa.
Com o objectivo de obter novos indícios que me ajudassem a
resolver esta dúvida, fui à Biblioteca Pública Municipal do Porto consultar o
manuscrito da Vita Theotonii. No sentido de assegurar a sua
preservação, o documento não está normalmente disponível aos leitores. Em sua
substituição é disponibilizado em microfilme. O acaso levou a que, no período
em que conduzi a presente investigação, a sala onde estava o equipamento de
leitura de microfilme não se encontrava disponível, devido a obras, pelo que me
foi permitido consultar o nosso bom manuscript de finais do
século XII. O facto de o pergaminho estar raspado precisamente no sítio onde
está a data da Era Hispânica e no último dígito do correspondente ano da
encarnação, conforme se vê nas manchas, dão-nos um precioso indício sobre os
problemas de cronologia enfrentados pelo autor ou pelo copista. Na ausência de
uma análise técnica especializada, atendendo apenas à posição das manchas e ao
facto de ter ficado um espaço livre a seguir à primeira data, avançamos com a
hipótese de ter havido alteração ou equívoco neste ponto do texto: a primeira
data seria, inicialmente, M.ª C.ª LXVIIII.ª, e teria sido
alterada por raspagem do VIIII, substituído por um X; na segunda, seria, em
sequência, acrescentada de uma unidade. Sendo assim, o original teria seguido o
cômputo de Florença, em perfeita consonância com a Vita Tellonis.
A alteração parece ter sido efectuada pela mesma mão». In Abel Estefânio, A Data de
Nascimento de Afonso I, Medievalista,
nº 8, 2010, Instituto de Estudos Medievais, direcção de José Mattoso, ISSN 1646-740X.
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