quarta-feira, 4 de março de 2015

Os Teatros de Lisboa. Júlio C. Machado. Ilustrações de Bordalo Pinheiro. «O que querem os senhores?, perguntava-lhes elle. Estão fartos da Norma, da Somnamhula, da Favorita, da Africana, dos Huguenotes: desconfio que estão a appetecer o Eurico! Estamos, sim! dizia-lhe a imprensa e a platéa…»

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NOTA: De acordo com o original

«(…) Perguntam-me se tem virtudes? De certo as tem. Excellente moço, excelente filho, e muito bom musico. Mas, não acima de tudo isto, porém a par de tudo isto, muito bom brincalhão, o que quer dizer um brincalhão infernal, inaturavel ás vezes. Que alegria permanente, que humor caçoísta! Em elle me encontrando na rua já finge evitar-me, corta para o lado opposto de repente, volta ainda, torna a ir, vem de tombo cair sobre mim, pede mil desculpas, mette-me o braço, e diz-me placidamente se é no verão: É o primeiro dia de calor que faz este anno! Ou, se é de inverno: É o primeiro dia de frio que temos! Depois, mesmo de braço dado commigo, não perde de vista os que vão e vêem. Finge que escorrega sobre um, faz como se estivesse preso por um botão ao chaile de uma senhora, larga a mostrar-me nem elle sabe o quê, apontando para um quarto andar; e d'alli a nada toda a gente principia a olhar também para o quarto andar...
Todos riem, todos lhe acham graça, todos gostam d'elle, e ha deveras razão para isso porque ninguém fica triste na sua companhia. Elle aproveita essa occasião para fallar serio por três minutos, e quando todos lhe prestam a attenção mais profunda, salta elle no collete de um amigo que por alli passa e grita-lhe fulminantemente: A minha cadeia e o meu relógio!... Oh!... Até que os encontrei!... Eu tenho medo d'elle como de apanhar sol... E entretanto, em se estando tempo sem o vêr, ou em os jornaes dando noticia de que a atroz, barbara gotta, o está pregando á cama, todos nós volvemos um pensamento de saudade ás alegres estroinices, infantis, innocentes, d'esse moço, que se distinguiu sempre pelo seu merecimento, e por um chic especial de graça e folia.
Folia, que parecia dever empallidecer na presença da alegria ruidosa, communicativa, do mais agradável e espirituoso companheiro que pôde achar-se, hoje rotundo, mas sempre gentil, gordo e ágil, bem nutrido e bem posto, feições de uma frescura, de uma quasi meninice immorredoura, perna curta, arqueada, e forte, hombro intrépido, barriga de banqueiro elegante, cores sadias, pequenino bigode á Gherubim, meio anjo meio Artagnan, um elegante enxertado em empresário, esperto, lesto, vivo, audaz: Valdez. Ah! Cuido ainda estar a vel-o nos tempos em que elle se apeava de um cavallorio immenso á porta da Eschola Polytechnica! Um pequenito armado em cabo de esquadra; fardeta apurada, golla a estoirar-lhe o pescoço atochado e curto ; baixinho, buliçoso, e vivaz; rosto de feições delicadas, regularissimas, pelle fresca e rosada, olhos de extrema sagacidade... O nome illustre da sua familia, e a graça que em todo elle respirava, ganharam-lhe facilmente entrada segura no mundo. Tinha a seu favor mil coisas. Era moço. Bem parecido. Bem educado. Intelligente. E... rico. De todos os talentos, este ultimo, sempre o melhor.
Estudava o seu primeiro anno de mathematica de manha, e cursava o Marrare pelo dia adiante. Como o fadara Deus com uma delicada aptidão para a musica, principiou a ser dilletante, accumulando as distincções de grande amador ao piano, e entendedor de arte e de artistas no theatro. Um pequenóte terrível! Tocava piano com extremo gosto, sentia e expressava a musica dos mestres ; protegia ou anniquillava as celebridades de S. Carlos. Foi o anjo da guarda de Nery Baraldi, e da Tedesco! Capitaneava janotas, era o heroe da platéa, fazia artistas como Warvich fazia reis. Foi-lhe apparecendo o buço n'estas lides. Conhecido em Alcácer pela sua familia, foi sempre tratado alli como o menino bonito, o herdeiro, o fidalgo, o menino Campos. Em Lisboa, o menino Campos, freguez por excellencia do Marrare, e terror do theatro lyrico, era o sr. Valdez.
Com os annos, com a experiência, com o desenvolvimento no trato da vida, foi passando a Campos Valdez, e fez-se empresário. Desde esse dia, representou sempre a boa administração theatral nas suas relações com a arte e o gosto. Ninguém como elle, para arranjar e accommodar as difficuldades, os embaraços, as dissenções, que ha sempre entre empresa e artistas. O publico não sabia nunca d'essas combinações, e via só o resultado ; que importa de que modo é feito o guisado, em o jantar sendo bom? Cedendo nos pontos secundários, inflexível nas grandes luctas. Não concedendo de mais ás exigências do publico, nem ás comodidades dos artistas, e andando sempre entre uns e outros ora como um advogado, ora como um dilletante. Conhecendo perfeitamente que era preciso de vez emquando lembrar-se de que a multidão não gosta de correr sempre para o sublime, e teima de vez emquando com alguma pretenção prudhommesca. O que querem os senhores?, perguntava-lhes elle. Estão fartos da Norma, da Somnamhula, da Favorita, da Africana, dos Huguenotes: desconfio que estão a appetecer o Eurico! Estamos, sim! dizia-lhe a imprensa e a platéa. Pois vamos a elle. E dava-lh'o; dava-lh'o para não lh'o pedirem mais». In Júlio César Machado, Os Teatros de Lisboa, Ilustrações de Bordalo Pinheiro, Livraria Editora Mattos Moreira, 1874, PN 2796 L5M25, Library Mar 1968, University of Toronto.

Cortesia de LEMMoreira/1874/Bordalo Pinheiro/JDACT